Árvores, uma paixão ancestral.

Nesta crônica, Raul Cânovas reflete sobre o comportamento das árvores.

Há momentos em que gosto mais de árvores do que de pessoas. Elas são inconscientes e inconseqüentes, até diria que, um pouco freudianamente. Vivem a partir da semente um mundo de sonhos, ignorando o tempo e o espaço, fincando suas raízes pelo puro prazer de bolinar o barro e parindo folhas que, mais tarde, poderão sangrar uma seiva poluída e desnutrida. Não importa, isso não importa, o que realmente interessa é o momento, esse instante jamais revivido que não levaram em conta princípios nem idéias.

Silenciosas, vivem despreocupadamente, alheias de suas próprias atividades vitais, não sentem remorsos pelo fruto, ainda verde, malogrado, nem tormentos internos por um ramo mal formado, tampouco temem a tormenta porque, simplesmente, desconhecem o futuro.
E assim, sem aquela consciência moral pela qual você e eu somos talhados, elas vivem e vivem bem. E, apesar de muitas vezes parecerem tristes e desfolhadas, jamais conheci uma árvore arrependida ou condenada a vivenciar qualquer culpa.

Possivelmente poderíamos julgá-las de atéias, já que não conhecem o medo do castigo divino. Talvez, elas próprias sejam o divino, essência cósmica que simboliza o crescimento ativado, por uma força dinâmica de regeneração continua. Mais ou menos, essa era a convicção religiosa dos habitantes da idílica Arcádia, região central do Peloponeso, Grécia antiga. Lá, as Hamadríades tinham a obrigação sacratíssima de viverem simbióticamente com as árvores. Essa associação recíproca, que unia cada uma dessas ninfas com cada habitante do bosque, começava simultaneamente no nascimento e só terminava com a morte de ambas. Levavam uma existência alegre, desfrutando do sol e da água das chuvas e defendiam suas protegidas de predadores e lenhadores. Homero contava que, de tempos em tempos, fugiam dos lenhos onde estavam enclausuradas para dançar com os sátiros, jovens travessos e doces, que simbolizavam a natureza e moravam nos bosques.

Pois é, sinto pelas árvores um apego diferente, uma querência atávica que remonta, quem sabe, àquela época em que eu próprio era um dendrobata, que contemplava o mundo desde a copa da árvore em que vivia. Um mundo primitivíssimo e hostil, com certeza, onde junto com aqueles amigos australopitecus pelejávamos para sobreviver no meio de densa floresta.
Hoje, você e eu, típicos representantes da raça humana moderna, continuamos batalhando para prosseguir nossas vidas. O cenário mudou, aquela mata espessa, cheia de perigos e mistérios ficou para trás. Conquistamos o conhecimento e não estamos mais perdidos naquela floresta, que era como uma metáfora ligada à ignorância. No entanto, meu amigo e minha amiga, morro de saudades daquele ar puro, do cheiro de mato, das ninfas que protegiam as árvores e que também cuidavam da gente.

Por tudo isso, por favor, não me leve a mal, às vezes prefiro a companhia de uma árvore. Há momentos em que gosto mais delas do que de pessoas.

Autor: Raul Cânovas

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