O divino habita o jardim

A teologia ensina que Deus é onipresente, tendo a capacidade de estar em todos os pontos por Ele criados

Nesse aspecto as religiões coincidem, mas partem sempre da ideia de que essa criação era paradisíaca, um belo e enorme jardim onde todos seus filhos teriam um lugar reservado para uma eterna existência de felicidades infinitas. Sendo assim o Princípio Supremo moraria num Éden onde alguns colaboradores, que plantaram e regaram com dedicação, foram recompensados pelo trabalho feito, tornando-se seus eternos jardineiros. Pelo menos isto é o que aparece em I Coríntios, capítulo 3, versículos 8 e 9.

Esse Éden, segundo o conceito semita, é puro e natural e foi lá onde o primeiro homem foi criado usando os elementos genuínos desse solo. Adão fora encarregado de zelar pelas necessidades da paisagem que possuía plantas para sustentar não apenas o espírito, mas também o corpo. Tudo isto é intrigante e alimentou a vontade humana de crer em algo superior e inefável, impossível de exprimir com palavras, contudo sonhado como o inventor de um Shangri-la místico e sentenciado a uma eterna simbiose de vínculo entre a sua própria divindade e a sobrenatural terra livre das iniquidades. Os biólogos insistem em que tudo isto é o produto de evoluções físico-químicas que chamam de Natureza, enfim, talvez mais uma denominação das tantas que tentam explicar a inexplicável deificação D’Ele.


Deusa Flora, óleo de Louise Abbéma – 1913

Baruch de Espinosa, filósofo holandês, pensava que Deus é alguém que se confunde inteiramente com a natureza, quer seja esta criada ou crie-se a si mesma. Ele prolonga-se na matéria como modo a manifestar-se, bastando-se a si mesmo no processo de criação contínua. As coisas sucedem mecanicamente, e o mecanismo é a razão, o mundo &eaceacute; a natureza e o que o movimenta é a razão e essa natureza é divina. Deus ou Natureza é a própria substância. Entretanto, segundo Espinosa, nascido e educado no seio de uma família judaica, o ser humano é unicamente uma fração dessa força ativa, e esta, naturalmente, não está limitada às exigências dos homens, mas a infinitas obrigações que se estendem à totalidade do universo.

De uma maneira ou de outra tentamos, infrutuosamente, explicar a existência de Deus apesar das contradições permanentes sobre sua aparência e seu caráter. Há quem afirme que nós fomos criados à sua imagem e semelhança. Será? Não sei, acho que esta é uma tese um tanto antropomorfa, para não dizer presunçosa. Prefiro o modo animista dos nossos antepassados remotos que se ligavam ao Supremo através dos fenômenos naturais, o sol, a lua, as estrelas e também as montanhas, os rios, a sflorestas, e sentiam sua presença nos trovões, no vento, na chuva, deduzindo que eram reprovações ou dádivas merecidas. Um modo cosmocêntrico e certamente mais despretensioso.

No Japão tradicionalista acontece algo parecido. O xintoísmo é uma religião que se caracteriza pelo culto à natureza e aos ancestrais, que podem se transformar em Kamis, espíritos da natureza que são venerados, manifestando-se como energias que se expressam por intermédio das ordens espontâneas do infinito.

Oriente e Ocidente tentaram decifrar Deus e sua morada muito antes das mitológicas narrativas gregas e romanas que falavam de uma deusa cujo palácio era o próprio bosque e que era conhecida como Flora, protetora de todos os jardins herdados da magnânima Ceres, a divindade que lhes ensinou os segredos da fertilidade da terra. Prova disto são os campos de Aaru, espaços celestiais, eternamente cobertos por juncos verdes, onde o sol nascia e Osíris reinava, segundo a mitologia egípcia, muito mais remota que aquelas. Cada civilização imaginava seu Deus ou seus deuses vivendo em paraísos onde coabitavam com plantas magníficas que floresciam incessantemente e que, ainda por cima, saciavam a fome e a sede com seus frutos doces e suculentos.

Os Campos Elíseos dos gregos, tão associado ao Céu cristão, O Jannat, onde Alá espera pelos muçulmanos puros, o Niwa bem aventurado dos japoneses. Sempre surge como uma metáfora o jardim associado à pureza do sagrado. Buda nasce em um vilarejo conhecido como Jardim Lumbini e no mesmo instante brota, longe desse local, a semente da figueira que lhe servirá de suporte para alcançar a iluminação suprema. Moisés, no Sinai, um deserto seco e estéril, encontra uma Acácia robusta o suficiente para com a sua madeira construir a Arca da Aliança. Certa vez, Jesus exemplificando afirmou: "Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o Lavrador”. Constantemente, mesmo que em sentido figurado, a natureza é o símbolo que constrói o respeito, a reverência e a devoção espiritual.


Eu sou a videira verdadeira

Casualidades? Crendices apenas? Pode ser. Mas é certo o lado atávico de herança perpetuada na alma humana que faz com que, apesar de ateus, descrentes das coisas impalpáveis e insondáveis, os incrédulos depositem sua fé nos enigmáticos mistérios proporcionados pela paisagem. Não dogmaticamente, isto é obvio, porém sabendo no fundo, no fundo, que sempre pode aparecer algo inusitado no jardim que lhes deixe com a pulga atrás da orelha.

Autor: Raul Cânovas

 

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